Durante 11 meses o Arquitetura da Gentrificação (AG) investigou um projeto de transformação urbana prevista para o Vale do Anhangabaú e áreas adjacentes do centro histórico da capital paulista desenvolvido pelo escritório dinamarquês Gehl Architects a pedido do banco Itaú. O projeto, que prevê novo mobiliário urbano, quiosques, cafés, lojas, novas fachadas para o comércio local, um hotel na avenida São João, um shopping subterrâneo na Galeria Prestes Maia e espelhos d'água ao longo do Vale, foi doado pelo banco à prefeitura. Se implementado, terá um custo estimado de R$ 200 milhões aos cofres públicos, segundo a própria SPUrbanismo, empresa pública submetida à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU) e que está à frente do projeto. A proposta de requalificação para o Vale do Anhangabaú faz parte de uma iniciativa maior da prefeitura chamada "Centro, Diálogo Aberto", cujo objetivo, em tese, é discutir com a população a requalificação da infraestrutura e de espaços públicos do centro da cidade prevista na meta 72 do Programa de Metas 2013-2016, do prefeito Fernando Haddad (PT).

Para além da pertinência das transformações urbanas propostas, o AG se dispôs a investigar as tratativas entre Itaú, Gehl e prefeitura ao longo de 2013 e o desdobramento dessa relação − que pode ser modelar para outros processos similares − entre poder público e setor privado. Durante quase um ano de apuração, foram entrevistadas mais de 30 fontes e analisados mais de 40 documentos e centenas de páginas, entre contratos, publicações do Diário Oficial, atas, processos licitatórios e outros documentos oficiais; foram produzidos áudios, vídeos e relatos de reuniões de comissões executivas às quais a reportagem compareceu. Os resultados das investigações foram submetidos a urbanistas e advogados, à Artigo 19, ONG que defende o direito ao acesso à informação, e ao conselho editorial do AG, formado por profissionais de diversas áreas. Os achados apontam contradições nos discursos das partes, simulacros de participação pública e exclusão da população vulnerável que vive e atua no centro − ambulantes, catadores e população em situação de rua − do processo de discussão do projeto. Foi ainda apurada uma incomum rapidez de agentes da prefeitura ao emitirem pareceres favoráveis à aceitação da doação feita pelo Itaú, pressa na liberação de verba pública, e uma notável autonomia da instituição financeira para atuar, sem interferência do poder público, na transformação urbana de espaços do centro da cidade. Em uma dessas atuações, o Itaú implementou projetos-piloto nos Largos Paissandú e São Francisco sem que tivesse autorização formal da prefeitura, tendo subcontratado uma outra empresa para isso. A tal empresa, que estava proibida de licitar com o município e que vem sendo investigada, desde 2012, por supostamente liderar um esquema fraudulento na Virada Cultural, iniciou a construção dos pilotos semanas antes de receber autorização da Subprefeitura da Sé para atuar no espaço público. Confira a seguir a linha do tempo desenvolvida pelo AG com cada etapa das tratativas, respectivas análises, documentos, imagens, áudios, vídeos e pontos de interesse levantados.

Por Sabrina Duran
Colaboração de Fabrício Muriana e Marcela Biagigo

Em reunião da Comissão Executiva da Operação Urbana Centro (OUC) de outubro de 2014, o projeto para o Vale do Anhangabaú não estava entre os temas principais a serem discutidos, mas apenas nos avisos gerais que abrem a reunião. Nesse momento, Luís Eduardo Brettas, superintendente do Desenho da Paisagem da SPUrbanismo e responsável, naquele dia, pela abertura dos trabalhos da comissão, passa rapidamente pelos avisos gerais informando que "acabou de ser publicada no Diário Oficial a contratação da empresa [que irá desenvolver projetos básico e executivo para o Vale], e a execução contratual se inicia a partir do primeiro dia útil de novembro". Em seguida, o gestor passa à pauta oficial da reunião.

Lia Mayumi, representante titular da Secretaria Municipal de Cultura (SMC) naquela comissão, pede a palavra após a exposição do primeiro tema do dia e volta ao assunto do Vale do Anhangabaú, questionando Brettas sobre o nome da empresa vencedora da licitação, o valor do contrato, o prazo de execução e se as diretrizes encaminhadas pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) seriam incorporadas ao projeto para o Vale. O superintendente responde aos questionamentos de Mayumi e, na sequência, passa a ser questionado, sobre o mesmo tema do Vale, por Marco Antonio Ramos de Almeida, da Associação Viva o Centro. A discussão se alonga por quase 20 minutos comendo tempo das pautas previstas para o dia e gerando visível aflição no diretor de Desenvolvimento da SPUrbanismo, Gustavo Partezani. Mais uma vez, pelas perguntas feitas, ficava claro o desconhecimento da Comissão Executiva da OUC sobre o andamento do que está sendo feito no âmbito do projeto "Centro, Diálogo Aberto", da SMDU; a cada resposta dada pelos gestores ficava clara também a urgência do poder público em encurtar debates mais profundos e evitar o dissenso. A ata ainda não foi publicada no site da Operação Urbana Centro, mas você pode conferir parte do áudio feito pelo AG aqui.

Privatizar a rua, mas sem vendê-la

A rigor, a privatização − ou a desestatização − significa a venda de um bem público ao setor privado. Essa definição em sentido estrito não se aplica, evidentemente, ao caso apurado e apresentado pelo AG nessa reportagem. O Vale do Anhangabaú, assim como os largos do Paissandú e São Francisco, não foram vendidos ao banco Itaú pelo município. O processo de "venda" aqui apresentado é muito mais sutil, homeopático e entranhado do que uma transação de compra e venda. Nas palavras do economista, sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Vainer, publicadas no ensaio "Pátria, empresa e mercadoria", trata-se de uma redefinição dos conceitos de poder público e de cidade "numa operação que tem como um dos esteios a transformação da cidade em sujeito/ator econômico (...) cuja natureza mercantil e empresarial instaura o poder de uma nova lógica, com a qual se pretende legitimar a apropriação direta dos instrumentos de poder público por grupos empresariais privados".

Quem visitou o Vale do Anhangabaú durante os jogos da Copa do Mundo de 2014 pôde testemunhar um exemplo concreto de privatização sem venda. Escolhido como palco das festas oficiais da Fifa durante os jogos, o Vale do Anhangabaú foi totalmente cercado por tapumes e gradis que restringiam o livre trânsito dos cidadãos naquela área. Até mesmo a vista gratuita sobre o Vale desde o Viaduto do Chá foi impedida pela colocação dos tapumes. Para entrar no espaço, as pessoas eram obrigadas a passar por revista feita por seguranças terceirizados. Se portassem algum alimento ou bebida, deviam descartá-los antes de cruzar as catracas que davam acesso ao Vale, sendo, portanto, obrigadas a consumir, a preços inflados − água a R$ 4 e lata de cerveja a R$ 8 − o que era vendido pelas empresas patrocinadoras do evento. A vigilância era ostensiva: bases policiais com câmeras, seguranças particulares e um destacamento de dezenas de policiais militares ao longo de toda a área do Vale do Anhangabaú.

A transformação da cidade em ator econômico, em "cidade-empresa", segundo Vainer, que compete com outras cidades para vender boa localização e atrair investimentos do capital transnacional, é melhor entendida à luz da agenda neoliberal imposta aos países da América Latina nos anos 1980, em decorrência da crise da dívida externa. É a partir dessa época, e especialmente nos anos 1990, que se intensifica sobre as nações endividadas a interferência ativa de instituições financeiras multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial, tendo como horizonte o ajuste fiscal dos países em crise.

O geógrafo inglês David Harvey, no livro "Espaços de neoliberalização: em direção a uma teoria do desenvolvimento geográfico desigual", aponta uma diferença chave entre o Estado liberal e o neoliberal no gerenciamento da dívida pública. Enquanto no Estado liberal os prejuízos advindos do mau investimento dos empréstimos feitos pelo poder público são totalmente arcados por este, no Estado neoliberal, os gestores públicos conseguem, junto às instituições financeiras multilaterais, a rolagem da dívida. Para tanto, tais instituições obrigam o Estado a realizar reajustes estruturais como, por exemplo, a flexibilização de leis trabalhistas, privatizações e cortes de serviços básicos, "não importando as consequências para a sustentabilidade e bem-estar social da população local." Por isso, segundo Harvey, a missão fundamental do Estado neoliberal "é criar um 'clima de bons negócios' e, assim, otimizar as condições para a acumulação de capital (...)."

Para além da flexibilização de leis trabalhistas, privatizações e outras medidas que condicionam a rolagem da dívida dos Estados e ainda a tomada de novos empréstimos, pouco a pouco, os Estados também foram forçados a transpor a lógica das empresas para sua gestão. "Isso significa que, além de colaborar com o equilíbrio financeiro do ajuste fiscal, as cidades deveriam tornar-se 'máquinas de produzir riquezas'", nas palavras do urbanista e professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Pedro Arantes, em artigo intitulado "O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades".

Se no contexto neoliberal as cidades − especialmente as grandes, como São Paulo − tornam-se cada vez mais cidades-empresa, como assegurar que elas alcancem "a eficácia, isto é, a produtividade e a competitividade que se espera de uma empresa?", pergunta-se o sociólogo Carlos Vainer. "A melhor solução", diz ele, "(...) é recorrer a quem entende do métier − se de empresa se trata, convoquem-se os empresários; se o assunto é business, melhor deixá-lo nas mãos de businessmen."

E aqui começa a atar-se o nó desse caso específico do projeto de transformação urbana do Vale do Anhangabaú e áreas adjacentes, pouco a pouco distinguível em um emaranhado das transações: ao doar à prefeitura um projeto arquitetônico de requalificação do centro histórico da cidade mais rica da América do Sul, com metodologia pré-definida que ele mesmo escolhe sem qualquer consulta prévia à população e pela qual paga; ao financiar, ainda, os workshops da empresa contratada que legitimarão sua metodologia perante a opinião pública; e por fim, ao subcontratar empresas que implementarão o projeto no espaço público sob suas premissas de cliente e a ele legalmente vinculadas, o banco Itaú assume os instrumentos do poder público e define, de saída, não apenas o tipo de desenho e função da cidade que quer ver reconfigurada, mas também o tipo de pessoa que desfrutará dessa nova cidade refeita − tratando-se de cidade-empresa, será a pessoa-cliente a beneficiária do novo espaço público redesenhado.

A contraface desse processo é que, ao aceitar que o Itaú ocupe o lugar de planejador, contratador, gerenciador e financiador principal de um projeto de transformação do espaço público, a administração municipal entrega ao banco seus instrumentos de poder público ao preço de uma "doação sem ônus". O que parece um contrasenso, na verdade, faz todo sentido no contexto neoliberal de gestão da cidade-empresa. "Os Estados não foram diminuídos como fez crer o ideário neoliberal, mas adaptaram-se às exigências das grandes corporações e do capital financeiro", escreve a urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Ermínia Maricato, no artigo "Globalização e Política Urbana na Periferia do Capitalismo".

Essa adaptação aparece entre as estranhezas processuais apontadas pelos advogados e urbanistas com os quais a reportagem do AG reuniu-se em 30 de outubro de 2014 para discutir os resultados da apuração. A principal delas é a agilidade com que os trâmites burocráticos de aceitação da doação do Itaú pela prefeitura foram feitos dentro das secretarias municipais. "Durante esse tipo de processo há uma ida e vinda burocrática que é normal, mas a rapidez com que isso foi feito não é comum na administração pública", afirmou Rodrigo Iacovini, advogado, mestre em planejamento urbano pela FAU-USP e membro da equipe ObservaSP (observatório ligado ao Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da FAU-USP).

De fato, a tal ida e vinda de pareceres iniciais e retornos entre uma instância pública e outra acontece com intervalos de um e dois dias. "No mesmo dia, o [Gustavo] Partezani [da SPUrbanismo] devolve o parecer, sem consultar ninguém, e diz que o projeto é de interesse público", apontou José Marinho Nery Jr., urbanista, doutor pela FAU-USP e arquiteto efetivo da prefeitura de São Paulo. Marinho refere-se ao parecer do superintendente de Desenho da Paisagem da SPUrbanismo, Luís Eduardo Brettas, sobre o projeto doado, que considerou de interesse público após escrever um breve relato sobre os workshops realizados pelos arquitetos dinamarqueses em abril de 2013. Brettas envia seu parecer ao diretor de Desenvolvimento da SPUrbanismo, Gustavo Partezani, em 9 de agosto de 2013. No mesmo dia, Partezani reencaminha o parecer a Fábio Teizo da Silva, chefe de Gabinete da SPUrbanismo, para que este tome providências. Teizo da Silva, também em 9 de agosto, reencaminha o parecer a Ricardo Simonetti, superintendente jurídico, para "análise jurídica e elaboração do Termo de Doação e ações correlatas". Ainda em 9 de agosto, Simonetti dá seu parecer favorável à aceitação da doação. Luiz Antonio Tiengo, outro superintendente jurídico, reencaminha o parecer de Simonetti a Teizo da Silva também no mesmo dia. Foram 4 idas e vindas em um único dia.

Marinho, que trabalha há 25 anos na prefeitura de São Paulo, diz que a SPUrbanismo não tem competência para dizer o que é ou não é de interesse público, e é categórico ao afirmar que Partezani deveria, pelo menos, ter consultado a Secretaria Municipal de Negócios Jurídicos (SMNJ). "A Secretaria Municipal de Negócios Jurídicos, através da Procuradoria Geral do Município (PGM), dá parecer sobre a legalidade de tudo o que a prefeitura faz. Todos os procuradores municipais são ligados a ela e estão presentes em todas as secretarias e subprefeituras. No caso daquele processo de doação, acho que o procurador ou a própria PGM deveria ter sido consultada sobre o interesse público da doação do Itaú. Achei estranho que nenhum órgão jurídico tenha sido ouvido no processo quanto a isso. O processo só foi para a assessoria jurídica da SMDU para formalizar/formatar o contrato. Não tenho ideia do porquê não foi ouvido um procurador municipal quanto ao interesse público da doação. Se o processo tivesse caído na minha mão, certamente teria encaminhado para o Jurídico para seu parecer", explicou o urbanista.

O advogado Rodrigo Iacovini corroborou a colocação de Marinho, e completou: "quando é um termo de doação sem ônus para o poder público, as secretarias podem assumir isso sem grandes problemas. Mas é uma parceria entre a prefeitura e o Itaú, com um termo de doação para um projeto no centro. Isso pode ter uma repercussão grande. Se eu fosse da SMDU teria passado pela Secretaria Municipal de Negócios Jurídicos porque isso pode dar um enorme problema no futuro."

A respeito da subcontratação, pelo Itaú, das empresas Metro Arquitetos e da Entre Produções − e da ONG Cidade Ativa pela Entre − para que implementassem os projetos-piloto no Largo do Paissandú e São Francisco, Rodrigo Iacovini considera esta uma das questões mais problemáticas de todo o processo apurado pela reportagem. "Trata-se da privatização do espaço público. É você começar a lidar com a manutenção e com a gestão do espaço público a partir do privado."

Para o sociólogo Carlos Vainer, entregar o público aos "cuidados" do setor privado não é pouca nem inócua transação. Significa, de acordo com ele, a despolitização da cidade, a negação da política entendida como a ação coletiva no espaço público. "O processo de privatização da cidade (...) portanto, é o fim da expectativa da democracia urbana. É a transformação do governo urbano em um governo autoritário."

De cidadão a cliente: a inclusão na cidade pelo consumo

57 estabelecimentos comerciais, entre cafés, bares, restaurantes, lojas e quiosques; um novo hotel − ou similar − numa das esquinas da avenida São João, próximo à Praça das Artes, na margem oposta à dos Correios; a transformação da Galeria Prestes Maia, embaixo da Praça Patriarca, em shopping subterrâneo. Todos esses novos estabelecimentos comerciais são sugeridos para o Vale do Anhangabaú num PDF de 52 páginas que compõe um pacote com dezenas de outros documentos, chamado Termo de Referência, entregue às empresas que concorreram ao edital de licitação número 037140100, da SPUrbanismo. O edital, lançado em abril de 2014, tinha como objetivo contratar empresa ou consórcio de empresas que desenvolvesse projetos básico, executivo e modelo de gestão para o Vale do Anhangabaú com base nos estudos do escritório dinamarquês Gehl Architects. O Termo de Referência, que serve para orientar as empresas concorrentes na confecção de uma proposta de projeto, trazia ainda outras especificações técnicas sobre a parte hidráulica, elétrica, viária, de mobiliário, de vegetação e outros aspectos da transformação prevista para aquela região.

O PDF de 52 páginas, onde está contida a planta com estabelecimentos comerciais e equipamentos de lazer e cultura, traz os resultados dos workshops realizados ao longo de 2013 pelo escritório dinamarquês e pagos pelo banco Itaú. Nesse documento, a vocação mercantil dada ao Vale é notável. "A região do Vale do Anhangabaú precisa de mais comércio. Trazer mais clientes a essa área beneficiará o desenvolvimento do Vale, convidando novos grupos de usuários e tornado o trajeto mais seguro para todos", lê-se na página 49, numa referência à transformação da Galeria Prestes Maia em uma "galeria comercial". O documento ainda traz a sugestão de construção de um novo prédio na esquina da avenida São João que "vai influenciar e ser essencial para a vida da cidade e na impressão geral do Vale do Anhangabaú". Embora a construção seja indicada no documento como "iniciativa individual", e não parte do projeto, o poder público dá as diretrizes "ao incorporador e arquiteto" que apostarem na ideia: "criar um novo edifício que tenha a função 24/7 (hotel ou similar) ou uso misto; um piso térreo ativo e aberto com funções públicas acessíveis; uma dimensão adequada aos edifícios vizinhos e que componha o contexto."

Em reunião da comissão executiva da Operação Urbana Centro (OUC) realizada em 30 de julho de 2014, o superintendente da Associação Viva o Centro e membro da comissão, Marco Antonio Ramos de Almeida, questiona a pertinência de um investimento público estimado de R$ 200 milhões para as obras no Vale do Anhangabaú, e da liberação, em dezembro de 2013, de R$ 2,8 milhões do orçamento vinculado à OUC para contratação de projetos básico, executivo e modelo de gestão para o Vale. O vereador Nabil Bonduki (PT), presente à reunião, comenta que "sobrará um saldo na conta vinculada, que dará para abrir a concessão do restaurante e criar vida no térreo e o Anhangabaú." O secretário municipal de Cultura, Juca Ferreira, que também compareceu ao encontro, corrobora o argumento de Bonduki manifestando-se logo após o vereador. Diz a ata da reunião: "o secretário Juca Ferreira comentou que (...) o Vale do Anhangabaú, fronteiriço, necessita de circulação de pessoas com atividade qualificada."

Para a urbanista Luciana Itikawa, que participou do primeiro workshop, em 17 de abril de 2013, o desenho proposto para o Vale do Anhangabaú não é neutro, e delimita − nesse caso pelo "bolso" − quem está, ou não, convidado a desfrutar o espaço.

Para explicar a falta de neutralidade desse novo desenho para o Vale do Anhangabaú, Luciana Itikawa faz um recorte histórico que remonta a 1991, ano de criação da Associação Viva o Centro (AVC), entidade sem fins lucrativos cujo objetivo é, segundo informa o site da associação, desenvolver "a área central de São Paulo em seus aspectos urbanísticos, culturais, funcionais, sociais e econômicos, de forma a transformá-la num grande, forte e eficiente centro metropolitano, que contribua eficazmente para o equilíbrio econômico e social da metrópole, para o pleno acesso à cidadania e ao bem-estar de toda a população".

Idealizada pelo então presidente do Banco de Boston, Henrique Meirelles, a AVC tem como associados diversos bancos, escritórios de arquitetura, empresas do ramo imobiliário, construtoras, universidades, associações e entidades diversas. Entre seus principais patrocinadores e mantenedores estão instituições financeiras como Itaú, Banco do Brasil e Santander. Com uma cadeira na comissão executiva da Operação Urbana Centro (OUC) ocupada pelo superintendente da associação, Marco Antonio Ramos de Almeida − citado algumas vezes na linha do tempo dessa reportagem −, a Viva o Centro procura influenciar políticas públicas no sentido da sua visão sobre o que é importante para a região central da cidade.

Em pesquisa de doutorado intitulada "A popularização do centro de São Paulo: um estudo de transformações ocorridas nos últimos 20 anos", a urbanista Beatriz Kara José informa que, segundo o banqueiro Henrique Meirelles, a ideia de criação da associação surgiu após ele conhecer a experiência ocorrida no Quincy Market, no centro de Boston, nos Estados Unidos. "A região era completamente degradada, conhecida como combat zone (zona de combate) devido ao domínio de traficantes e agentes do crime organizado. No início da década de 60, obras de renovação realizadas com a participação do poder público e de empresários transformaram o local perigoso em área de lazer e turismo, ao remover a população de baixa renda aí residente; ou seja, um modelo de gentrificação", escreve Kara José. Meirelles segue sendo presidente da Associação Viva o Centro, e o banco Itaú, após transação de mais de R$ 4 bilhões realizada em 2006, comprou o Banco de Boston.

É nessa transferência de poderes − na verdade, uma continuidade − que Luciana Itikawa vê o elo entre o atual projeto para o Vale do Anhangabaú, de forte apelo comercial − portanto refratário a populações pobres e vulneráveis − e a concepção elitista de cidade da Associação Viva o Centro presente no ideário do seu idealizador e atual cabeça. "Esse pensamento de que uma corporação financeira pauta projetos urbanísticos não veio aqui de São Paulo, não veio do Itaú, ela veio lá de Boston, onde existem os Business Improvement District (BID)[perímetro pré-definido de um distrito no qual se pretende fomentar os negócios por meio de projetos urbanísticos pontuais, muitas vezes segregadores; criação de regras rígidas para limitar o uso do espaço público por parte de pequenos comerciantes, aumento do efetivo policial, incluindo seguranças particulares, entre outras estratégias]. É uma concepção corporativa norte-americana de se apropriar e privatizar o espaço público. O Itaú compra o Banco de Boston e reproduz isso, não de uma forma escancarada, mas velada, na medida em que pressiona determinados órgãos da prefeitura para que respondam aos seus interesses. Isso não é de agora, isso vem de um pensamento profundamente conservador e excludente que as elites compraram, literalmente.”

A página 17 do PDF que integra o Termo de Referência do edital de licitação citado acima traz uma lista com seis "critérios de sucesso" para tornar o Vale do Anhangabaú o "coração da cidade". Encabeçando a lista está o seguinte critério: ser um local inclusivo e seguro, "não dominado por determinados grupos de usuários". O documento não chega a mencionar, explicitamente, quais grupos de usuários são os desejados para dominarem o espaço.

Espaço público pacificado: a criação de consensos

Desde uma perspectiva histórica, o principal consenso sobre o centro de São Paulo é que se trata de um lugar degradado, perigoso e carente, desde sempre, de um projeto de revitalização que o salve do abandono. De acordo com os estudos da urbanista Beatriz Kara José, esse discurso nasce a partir das transformações econômicas e sociais que mudam a configuração dessa região da cidade a partir década de 1960. Nessa época, o mercado imobiliário passa a alocar seus investimentos em outras regiões da cidade, especialmente no chamado quadrante sudoeste, distante, portanto, das elites instaladas na região central.

O processo de migração das residências dos mais ricos e do comércio e serviço destinados a esse público para as regiões da avenida Paulista e Faria Lima, por exemplo, se intensifica nas décadas 1970 e 1980, ao passo que, na mesma época, a ampliação da malha de transportes para a área central da cidade acaba atraindo um público de menor poder aquisitivo à região. Nos anos 1990, o boom imobiliário promovido por investimentos em escritórios de alto padrão nas avenidas Paulista, Faria Lima, Berrini e na Marginal Pinheiros acentua ainda mais o processo de esvaziamento da região central das grandes empresas, principalmente as instituições financeiras, e isso, de fato, segundo Beatriz Kara José, contribuiu para a deterioração do espaço urbano do centro, na medida em que causou "dois grandes impactos: o aumento paulatino do número de edifícios vazios, por um lado, e a diminuição de usuários dos espaços, comércio e serviços existentes em alguns setores, por outro."

Mas nem por isso, e mesmo com as contradições sociais que o afetam, o centro de São Paulo perdeu seu valor e importância para o conjunto da cidade. A despeito do seu esvaziamento pelas elites e classe média, a região permanece como um dos principais pólos de emprego da capital paulista, concentra dezenas de equipamentos e serviços públicos, além de uma vasta malha de transportes metro-ferro-rodoviária. "Tal complexidade do centro é perdida de vista na medida em que a sua imagem é constantemente ligada a aspectos negativos exaltados pela imprensa, como violência, sujeira, insegurança, generalizados como realidade única", afirma Kara José. Conforme o centro da cidade se consolidava como espaço popular, consolidava-se também o consenso sobre sua degradação. Um consenso que é, sobretudo, "ideológico", em termo utilizado pela urbanista, pois reflete a visão de mundo das elites sobre um espaço que consideram impróprio para si mesmas.

No esteio do estigma da degradação surgem, já na década de 1970, as primeiras ideias de "revitalização" do centro na agenda pública. A primeira delas foi o "Plano de Revitalização do Centro", criada − curiosamente − pelo prefeito biônico de São Paulo Olavo Setúbal (1975-1979), dono do banco Itaú. Um de seus feitos foi a implantação de calçadões no centro velho − região da Sé −, obra da qual disse, em entrevista ao sociólogo Heitor Frúgoli Jr. em 1997, que se arrependia profundamente pelo fato de os ambulantes terem ocupado o espaço para comercializar seus produtos, forma de uso popular não desejada por Setúbal "(...) é uma ilusão pensar que numa cidade, numa megalópole como São Paulo, de um país pobre como o Brasil, se pode segregar uma área para a mesma ter um padrão de primeiro mundo europeu. Então, você pode imaginar que o modelo de calçadões, que teve bastante êxito em algumas cidades, como por exemplo Munique, na Alemanha, seja um processo válido para o Brasil. O calçadão virou no Brasil um permanente problema de "mercado persa". Não se consegue evitar" − depoimento publicado no livro "Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole", de Frúgoli Jr.

Apesar das tentativas subsequentes de "reversão da degradação" do centro São Paulo nos anos 1970 e 1980, foi só nos anos 1990 que a pauta ganhou força, principalmente com a criação da Associação Viva o Centro, que "foi fundamental para disseminar a ideia de revitalização na opinião pública", afirma Beatriz Kara José.

Dos anos 1990 até hoje, praticamente todos os governos municipais investiram, com maior ou menor efetividade, em planos de "revitalização" para a região. Agora, em 2013/2014, o governo de Fernando Haddad (PT), por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU), inova na criação de consensos propondo outros dois no caso do Vale do Anhangabaú − além da histórica degradação de cunho ideológico −, capazes de reunir diversos atores da sociedade civil em torno de um projeto único de cidade "requalificada", como convencionou-se dizer no projeto "Centro, Diálogo Aberto", da SMDU.

O primeiro novo consenso é o de que o centro da cidade é um lugar de passagem de pessoas, não de permanência, e portanto é preciso reativá-lo com atividades de consumo, lazer e cultura. A afirmação do consenso é feita textualmente no site "Centro, Diálogo Aberto", da SMDU, nos seguintes termos: "desde o início do terceiro milênio o centro de São Paulo se caracteriza por ser um espaço de passagem, e não um espaço convidativo ao lazer, à convivência e à apreciação de sua história." O segundo consenso, apresentado nos materiais produzidos pela SMDU com os resultados dos workshops (aqui e aqui), é que o elemento água precisa ser reintroduzido no espaço público, por meio de espelhos d'água instalados ao longo do Vale, com fins de recreação, organização dos espaços e de retomada da memória do rio Anhangabaú canalizado há décadas.

O primeiro novo consenso passa ao largo dos números: mais da metade da população em situação de rua da capital encontra abrigo − permanece, portanto − naquela região, segundo levantamento censitário de 2011 feito pela própria prefeitura; além deles, também se abrigam e tiram seu sustento do centro, ao longo do dia e da noite, os catadores de material reciclável, as prostitutas e os vendedores ambulantes. Sobre o segundo consenso, pesa um questionamento de cunho ambiental sobre o impacto e pertinência dos espelhos d'água uma vez que a grave crise hídrica pela qual passa a cidade nesse momento já era tragédia anunciada desde 2004, quando o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) alertou a Sabesp sobre a necessidade de a concessionária tomar providências para situações de escassez do recurso hídrico.

Acontece que a força dos consensos, nesse caso específico de construção de cidade-empresa capitaneada pelo banco Itaú, mediada pela prefeitura e legitimada pelo escritório dinamarquês de renome internacional que combate a carrocracia, as obras monumentais e postula a retomada da cidade pelas pessoas − quem seria contra isso? −, não está na sua correspondência com os fatos, e sim na "sensação de crise" que desperta nos cidadãos, nas palavras de Carlos Vainer. É justamente essa sensação de crise que neutraliza os dissensos próprios do espaço público, pacificando e irmanando diferentes atores sociais em torno de um mesmo projeto de cidade "ressignificada", ainda que à revelia dos fatos.

"Como construir, política e intelectualmente, as condições de legitimação de um projeto de encolhimento tão radical do espaço público, de subordinação do poder público às exigências do capital internacional e local?", pergunta o sociólogo e economista Carlos Vainer. "Talvez nada seja mais consistente e reiteradamente enfatizado (...) que a necessidade do consenso. Sem consenso não há qualquer possibilidade de estratégias vitoriosas."

Estética da participação

Embora obrigatória por lei "na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano" (artigo 2 do Estatuto da Cidade), a participação pública nos processos que decidem as transformações do espaço urbano não tem uma forma definida, muito menos detalhada. Ela acaba acontecendo ao sabor da abertura ou opacidade de cada governo, podendo variar de um mero "cumprir tabela" para evitar problemas com a lei, a uma participação da sociedade civil que pode se efetivar em vários graus, não sendo uma mera ferramenta de homologação daquilo que já está dado pelo poder público.

No contexto da cidade-empresa neoliberal, os processos participativos tornam-se especialmente movediços devido a uma "confluência perversa" entre dois projetos antagônicos, nas palavras da cientista política Evelina Dagnino, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no artigo "Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando?". De um lado, diz ela, está o projeto de alargamento da democracia, que tem seu marco formal na Constituição de 1988 e do qual o Estatuto da Cidade é a regulamentação dos artigos 182 e 183, que tratam do desenvolvimento de políticas urbanas executadas pelo poder público municipal. Do outro lado está a aplicação do receituário neoliberal aos países da América Latina que acaba transformando as cidades em "máquinas de produzir riquezas", como já foi dito aqui. Ambos os projetos, diz Dagnino, "requerem uma sociedade civil ativa e propositiva". Ambos também utilizam referências comuns − como participação, sociedade civil e cidadania −, mas em chaves distintas, muitas vezes opostas. A armadilha, portanto, está na disputa de significados, e em como esses significados definem a forma e os resultados da participação. "A agenda de reforma neoliberal do Estado brasileiro também veio acompanhada de um discurso participacionista e de valorização da sociedade civil, redefinida como "terceiro setor", que esvaziava de sentido a proposta de cidadania ampliada para alinhá-la com a ideia de Estado mínimo", escreve a urbanista Raquel Rolnik no artigo "10 anos de Estatuto da Cidade: das lutas pela reforma urbana às cidades da Copa do Mundo." Portanto, diz Rolnik, a mera existência de qualquer processo participativo "sem conexão explícita e claramente configurada no interior dos processos decisórios atende perfeitamente a um modelo que fortalece o centro − e não empodera as bases − nos processos decisórios."

É possível dizer, então, que num processo participativo que aconteça na democracia brasileira − seja lá qual formato tenha −, as diretrizes e decisões não estão dadas a priori, o que amplia as possibilidades de interferência da sociedade. Já no projeto neoliberal de cidade-empresa, o envolvimento da sociedade civil nas discussões junto ao poder público respeita uma "estética da participação", nas palavras da urbanista Luciana Itikawa, mas não está imbuído de poder decisório, portanto apenas legitima o que já foi definido de antemão pelas elites.

O processo participativo realizado em 2013 pela SMDU com a sociedade civil para discutir as transformações do centro de São Paulo é, sem dúvida, um caso a ser destrinchado. Além dos workshops do ano passado ministrado pelos dinamarqueses do Gehl Architects, foram realizados também, segundo a pasta, encontros específicos com entidades, secretarias municipais, associações e outros atores com o objetivo de ampliar o diálogo sobre os projetos de requalificação. Para além do formato dos workshops, número de encontros e participantes, é notável como os materiais oficiais de divulgação do projeto, as notas da assessoria de imprensa da pasta e mesmo o secretário municipal de Desenvolvimento Urbano, Fernando de Mello Franco, e o diretor de Desenvolvimento da SPUrbanismo, Gustavo Partezani, repetiam as palavras "participação", "colaboração", "diálogo" e "construção coletiva" para se referirem aos processos que deram origem às diretrizes do projeto definitivo para o Vale do Anhangabaú e que formataram os projetos-piloto realizados nos Largos Paissandú e São Francisco.

Se o processo foi realmente aberto e dialógico, cabe confrontar o discurso oficial com as opiniões de quem participou dos eventos e com os resultados advindos do processo. As principais críticas dos entrevistados pelo AG recaem sobre o fato de os workshops terem partido de ideias pré-definidas sobre o que era uma ocupação adequada do espaço público − com base em experiências realizadas em cidades norte-americanas e europeias − e de a SPUrbanismo usar uma metodologia de avaliação do espaço estabelecida a priori − e financiada pelo banco Itaú, importante lembrar, que escolheu e contratou o escritório dinamarquês Gehl Architects.

Outra crítica é que a SPUrbanismo não contemplou, em sua lista de convidados, agentes fundamentais para a ampliação de perspectivas sobre as melhorias necessárias ao centro da cidade, pessoas e entidades com atuação histórica naquele espaço tão particular da capital paulista. "Eu não percebi na plateia ninguém, seja de entidades, seja de movimentos sociais, que representam ou que lidam com a questão da população em situação de rua, dos ambulantes e dos catadores", afirmou a urbanista Luciana Itikawa, presente em um dos workshops. "Acho que isso é muito importante de se dizer porque a interlocução nunca é neutra. Você escolhe a interlocução dependendo de quem você chama, ou da forma como você chama, privilegiando a importância do seu interlocutor."

Das 75 empresas, entidades e instituições convidadas pela SPUrbanismo a tomar parte nos processos participativos, apenas duas tinham alguma relação com populações vulneráveis: Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e Instituto Religare, que lida com jovens em situação de risco social. Pastoral do Povo de Rua, coordenada pelo padre Júlio Lancellotti; Rede Rua, criada no início dos anos 1990 por Alderon Costa para defender os interesses da população em situação de rua; Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), que tem Eduardo Ferreira de Paula como uma das lideranças; Celina Cardoso Marra, do Fórum dos Ambulantes, uma das figuras mais ativas na defesa dos direitos dos vendedores ambulantes de São Paulo: nenhuma dessas pessoas ou entidades foi chamada para o debate, e no momento em que foram entrevistadas pela reportagem, no início do segundo semestre de 2014, sequer sabiam das propostas de requalificação para o centro da cidade.

As evidências documentais de que os dois estudos realizados pelo Gehl Architects no Vale do Anhangabaú em 2007 e 2013 trazem praticamente a mesmas propostas de intervenção no espaço − especialmente no que se refere à implantação de espelhos d'água, renovação das fachadas do comércio local e a introdução de novos estabelecimentos comerciais na área −, dão margem ao entendimento de que o processo participativo realizado pela SMDU não foi definidor das diretrizes do projeto de 2013, mas sim legitimador de algo que já estava pré-definido para o Vale.

Outra evidência documental da função homologatória do processo participativo, indicando a perspectiva de um público-alvo protagonista e beneficiário das intervenções, é a ausência das populações vulneráveis também em sua "detecção" nas pesquisas de campo realizadas no Vale do Anhangabaú. Enquanto o estudo de 2007, feito a pedido do ITDP, menciona a presença de pessoas em situação de rua, prostitutas e ambulantes na região, o de 2013, feito a pedido do banco Itaú, não menciona em nenhum momento, nos resultados dos workshops pulicados no site do projeto "Centro, Diálogo Aberto", a existência dessas populações, embora a metodologia do Gehl Architects utilizada no estudo tenha sido a mesma de seis anos antes, assim como a área do centro em que foi aplicada. Se, como aponta o sociólogo Carlos Vainer, a cidade-empresa está construída para clientes solventes, então é importante legitimar aqueles que o são, e negar a existência aos que não podem pagar por ela.

Para o urbanista Fred Vergueiro, que esteve presente na apresentação oficial do projeto na prefeitura em 17 de dezembro de 2013, uma proposta de intervenção urbanística deve ser "porosa o bastante" para ser capaz de absorver as contribuições de diversos setores da sociedade. "Para se pensar num processo participativo, eu imagino que você tenha que mudar a natureza do processo de projeto. A questão não é quantas pessoas vão dar voz a uma forma, mas que essa forma não exista a priori. É importante que o próprio processo participativo seja capaz de gerar as demandas e soluções. É um processo difícil, realmente. Mas se você pensa o projeto como um resultado formal que vai conseguir fazer com que aquela realidade social se mantenha coerente com essa forma física [dada a priori], todo o esforço para se realizar o encontro de muitas pessoas pode ser em vão."

A não resposta é uma resposta

Em 2013, na primeira fase do Arquitetura da Gentrificação, foram publicados pelo menos dois dossiês que, assim como esse, custaram meses de apuração para serem produzidos. Parte do longo tempo de investigação se deu pela natureza do trabalho, cujo objetivo é destrinchar os processos por trás das histórias, e não apenas noticiar um fato pontual. Outro motivo foi a dificuldade de obter informações públicas, fosse nos sites dos governos municipal e estadual, fosse por meio das assessorias de imprensa das secretarias, canais específicos de comunicação entre repórteres e órgãos públicos para fins jornalísticos.

Nesse ano, durante a apuração sobre os projetos de requalificação do centro de São Paulo, a dinâmica das relações entre o AG e assessorias de imprensa do poder público municipal se repetiu sem qualquer diferença em relação à do ano passado, indicando, portanto, que não se trata da postura pessoal de um ou outro assessor de imprensa, mas de um "modus operandi" cristalizado dentro dos órgãos de governo destinados a fornecer informações públicas.

À medida em que a reportagem se aproximava de dados mais sensíveis da prefeitura, capazes de revelar irregularidades ou impropriedades dos gestores no trato da coisa pública, os assessores de imprensa lançavam mão de expedientes que dificultavam o trabalho dos repórteres. Expedientes que iam da demora inexplicada para retornar contatos telefônicos e via email com solicitações de informação, reencaminhamento das demandas a outras secretarias − que, por sua vez, reencaminhavam a reportagem à secretaria onde primeiro a solicitação havia sido feita −, além de respostas genéricas e tergiversações sobre pedidos de informação pontuais. Em contatos telefônicos, era comum assessores darem respostas longas e divagativas sobre assuntos específicos, e aumentarem o tom de voz ao menor sinal de interrupção do repórter para evitar que este retomasse a conversa do ponto em que ela havia começado, ou seja, numa pergunta objetiva. Quando todos esses expedientes eram esgotados, partia-se, então, para o silêncio. O AG tem uma coleção de emails arquivados, desde 2013 até meados de novembro de 2014, com solicitações de informações públicas que simplesmente foram ignoradas por assessores de imprensa.

Apesar de o projeto de requalificação do centro investigado pelo AG fazer parte de um programa da prefeitura chamado "Centro, Diálogo Aberto", a reportagem encontrou, no meio das investigações, as portas das assessorias municipais fechadas, especificamente as da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU), SPUrbanismo, Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) e Secretaria Municipal de Cultura (SMC). Diante da falta de transparência institucional, a equipe de reportagem decidiu recorrer à lei 12.527/2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI), para conseguir os dados públicos necessários à composição das análises aqui apresentadas.

O AG estabeleceu uma parceria com a ONG Artigo 19, que atua na defesa do acesso à informação e liberdade de expressão, e todos os pedidos foram feitos por meio dela, com base na sua experiência de formulação de solicitações e análise de respostas recebidas. Em tempo: 19 é o artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos que assegura que "todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão." A Artigo 19 protocolou, ao todo, 14 pedidos, tendo como destinatárias a SMDU, SPUrbanismo e a Subprefeitura da Sé. Desse total, quatro pedidos foram para primeira instância após a ONG recorrer por entender que as perguntas não haviam sido respondidas satisfatoriamente; dois foram para segunda instância e um foi para terceira instância pelo mesmo motivo. As análises pormenorizadas feitas pela Artigo 19 sobre cada uma das respostas do poder público podem ser lidas no link Transparência desse site. De todo esse cenário cristalizado com processos opacos e secretistas de determinadas áreas da administração municipal, dois fatos ficaram claros para a reportagem: o primeiro é que quanto maior a esquiva do poder público de determinada pergunta, maior a evidência de que é a pergunta certa a ser feita − se ela será respondida ou não, essa é outra questão. Portanto, a não resposta é também uma resposta eloquente.

O segundo fato é que, apesar da naturalidade com que algumas assessorias de imprensa sonegam informação pública, é fundamental a sociedade civil ter em conta que constitui conduta ilícita do agente público pelo artigo 32 da Lei de Acesso à Informação:

I - recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta Lei, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa;

II - utilizar indevidamente, bem como subtrair, destruir, inutilizar, desfigurar, alterar ou ocultar, total ou parcialmente, informação que se encontre sob sua guarda ou a que tenha acesso ou conhecimento em razão do exercício das atribuições de cargo, emprego ou função pública.

Em fins de outubro desse ano, em uma última tentativa de conseguir retorno a uma solicitação de informação pública feita por email à assessoria de imprensa da SMDU, a reportagem do AG ligou para a assessora a fim de cobrar a resposta que já tardava quase duas semanas para ser enviada sem qualquer retorno que explicasse o motivo da demora. Ao dizer à assessora que não fazia sentido ter que recorrer à Lei de Acesso à Informação para obter um dado público tão simples quanto o que estava sendo pedido, a repórter ouviu como réplica da assessora, claramente irritada: "você está me ameaçando com a Lei de Acesso à Informação?" Mais do que paradoxal, é sintomático que uma agente pública cujo ofício é lidar com a abertura de informações, sinta-se ameaçada por uma lei que exige transparência.

A generosidade é laranja?

O objetivo dessa reportagem-dossiê é e foi, desde o princípio, destrinchar e entender os processos legais, políticos e institucionais que levaram a prefeitura de São Paulo a aceitar a doação feita pelo banco Itaú não apenas de um projeto de transformação urbanística para o Vale do Anhangabaú, mas de uma ideia-mestra e a priori do tipo de ocupação "desejável" para o centro da cidade.

Como dito no início dessa reportagem, trata-se de um processo que pode ser modelar para outras parcerias entre o setor privado e a administração pública dentro de um contexto neoliberal de construção de cidade-empresa, feita para atrair investimentos do capital transnacional e ser consumida por clientes solventes. É um processo modelar porque traz em si o germe de uma privatização do espaço público que opera em silêncio no interior das estruturas do poder público, portanto, sem o ônus político que recairia sobre o gestor que, sob a justificativa da falta de dinheiro em caixa para governar, por exemplo, literalmente privatizasse uma área da cidade. É modelar porque tem o aval legal de gestores do município por meio de pareceres e homologações em comissões − ainda que sejam pareceres e homologações questionáveis, feitos às pressas e sem aprofundamento técnico. Modelar porque, além do aspecto legal, o poder público também oferece ao privado seus instrumentos de gestão, seja o do planejamento, seja o da contratação de empresas, seja o da realização de processos participativos "oficiais" que, de certa forma, protegem a municipalidade de ser questionada na Justiça por realizar uma transformação urbana sem ouvir os cidadãos, como manda o Estatuto da Cidade − foi o que aconteceu com o projeto imobiliário "Nova Luz", do ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD), que foi engavetado graças a uma ação civil pública movida pela Defensoria Pública de São Paulo após a pressão de moradores e comerciantes das regiões da Luz e Santa Ifigênia que não foram ouvidos durante o processo de construção do projeto.

Por fim, é um processo modelar porque o Termo de Doação, instituído pelo decreto municipal 40.384/01, é um instrumento que pode facilitar a contratação direta, pelo setor privado, de empresas que farão uma intervenção urbanística no espaço público sem que para isso seja necessário um processo de licitação. Para tanto, a empresa precisa ser considerada de "notória especialização", segundo artigo 25 da lei federal 8.666/1993, que trata de licitações e contratos da administração pública. Foi o caso da contratação do escritório Gehl Architects pelo Itaú. Nesse caso específico, bastou que gestores públicos, e o próprio Itaú, apenas mencionassem em documentos oficiais a experiência internacional do escritório dinamarquês em projetos similares para adequá-lo ao artigo 25 da lei e, assim, justificarem a ausência de licitação.

Em 10 de setembro desse ano, foi publicada no Diário Oficial do Município nova doação feita à prefeitura pelo banco Itaú, dessa vez, à Secretaria Municipal de Cultura (SMC). Trata-se de "doação de serviços de requalificação da OCA - Pavilhão Lucas Nogueira Garcez." O banco lança mão do mesmo instrumento jurídico Termo de Doação usado para doar o projeto do Vale à prefeitura. Por email, o AG solicitou acesso ao documento à assessoria de imprensa da SMC. Mais de duas semanas depois do envio, ainda não obteve resposta. A urbanista Luciana Itikawa alertou a reportagem sobre um fato curioso: o Pavilhão Lucas Nogueira Garcez já havia sido restaurado em 2000 a pedido da Fundação Bienal. O trabalho foi realizado pelo escritório do arquiteto Paulo Mendes da Rocha e pelo MMBB. (Veja ficha técnica, memorial e fotos da restauração no site da MMBB).

O banco Itaú, cujo lucro em 2013 foi o maior da história de todos os bancos do país − R$ 15,7 bilhões −, doou ao município um projeto arquitetônico e alguns workshops ao preço de 500 mil euros − pouco menos de R$ 2 milhões. Com isso, ganhou autonomia e protagonismo na redefinição de uso e ocupação do centro histórico de uma das cidades mais ricas e estratégicas do mundo. Ao modo das doações feitas a candidatos e partidos por grandes empresas, pode-se dizer que a doação do Itaú não foi um ato desinteressado − tratando-se de um banco −, mas sim um investimento capaz de render dividendos financeiros e políticos.

Para a prefeitura, não resta dúvidas de que um Vale do Anhangabaú e adjacências "ressignificados", adornados por espelhos d'água, cafés, quiosques, lojas, shopping e toda uma proposta de aproveitamento comercial e turístico do espaço estão em consonância com o projeto maior da criação de uma cidade capaz de competir com outras em termos de localização atraente aos investimentos do capital imobiliário e financeiro. A escolha do Vale do Anhangabaú para a realização das festas oficiais da Fifa durante a Copa do Mundo de 2014 foi um importante precedente aberto nesse sentido, com a "privatização sem venda" funcionando sem entraves, com direito a oligopólio dos patrocinadores oficiais na oferta de produtos alimentícios na área do evento, restrição da circulação de pessoas com a utilização de catracas, vigilância ostensiva da polícia militar e controle terceirizado do espaço público.

Em artigo intitulado "Parcerias público-privadas: o cavalo de Tróia do desenvolvimento neoliberal?", a professora de Planejamento Urbano e Regional da Universidade de Illinois Faranak Miraftab analisa experiências de parcerias público-privadas (PPP) em países do terceiro mundo, especificamente o conflito inerente entre os interesses de lucro do setor privado e o interesse de bem estar-social das comunidades, e o papel fundamental do Estado em ser o agente regulador da parceria para manter o equilíbrio dos interesses dada a "probabilidade de a PPP se tornar uma forma de privatização sob as políticas neoliberais de descentralização."

Embora Miraftab analise casos de PPPs em sentido contratual estrito, é possível extrair do estudo importantes diretrizes a serem contrapostas aos termos da parceria entre a prefeitura de São Paulo e o banco Itaú já apresentados nessa reportagem. Para a especialista, há três aspectos importantes na construção de uma parceria equilibrada: o primeiro é a definição clara dos papéis e responsabilidades dos atores envolvidos; o segundo é como estabelecer e alcançar relações de poder horizontais entre os parceiros; e o terceiro é em que medida, e como, o Estado deve desempenhar um papel de mediador, permitindo e regulando a PPP. Por fim, Miraftab alerta: "filantropia do setor privado ou benevolência do governo não são fundamentos confiáveis para uma parceria."

Considerando que os acordos entre Itaú e prefeitura de São Paulo já estão firmados e pagos, resta agora saber em que se converterá a generosidade laranja que tomou o centro de São Paulo nos últimos meses de 2014.